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Passando a boiada, os tratores e as escavadeiras: retrocesso na Lei da Mata Atlântica.

Um dos maiores retrocessos ambientais na história recente do Brasil está representado pelo Projeto de Lei (PL) 364/2019[1], o qual versa sobre a utilização e proteção da vegetação nativa dos Campos de Altitude associados ou abrangidos pelo bioma Mata Atlântica. Entre as justificativas do Deputado Federal Alceu Moreira (MDB/RS), que apresentou o PL 364/19, cita-se:

“É preciso promover uma flexibilização da legislação que mantenha a proteção dos Campos de Altitude, mas que, ao mesmo tempo, permita ao produtor rural desenvolver suas atividades sem que esteja sujeito a multas, embargos, processos e aborrecimentos de toda ordem. Essa alteração legislativa é fundamental para que a produção agrícola das regiões de Campos de Altitude não seja completamente anulada.” (Justificativa do PL 364/19)

Em 20/03/2024, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) concluiu pela constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação do PL 364/2019. Na prática[2], o texto aprovado na CCJC vai retirar a proteção legal de todas as áreas de vegetação não-florestal, ou seja, fitofisionomias campestres nativas que ocorrem no domínio da Mata Atlântica, e vai além, retira toda a proteção legal dessas vegetações campestres em todos os biomas brasileiros! Isso porque o PL define o conceito e as faixas latitudinais de Campos de Altitude em seu art. 2º, § 1º, da seguinte forma:

 Art. 2º Para os efeitos desta Lei consideram-se Campos de Altitude as formações vegetais associadas ou abrangidas pela Mata Atlântica, com estrutura herbácea ou herbácea/arbustiva, caracterizadas por comunidades florísticas próprias que ocorrem sob clima tropical, subtropical ou temperado, geralmente nas serras de altitudes elevadas, nos planaltos e nos refúgios vegetacionais, bem como outras pequenas ocorrências de vegetação campestre, que estejam inseridas na delimitação do bioma estabelecida em mapa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

§ 1º Os Campos de Altitude de ambiente montano estão situados nas seguintes faixas de altitude:

I – de 600 a 2.000 m nas latitudes entre 6º S e 16º S;

II – de 500 a 1.500 m nas latitudes entre 16º S e 24º S;

III- de 400 a 1.000 m nas latitudes acima de 24º S.

Simplesmente um desastre…e como não podia ser diferente, gerou nos últimos dias indignação, repulsa e manifestações técnicas por parte de inúmeras instituições da sociedade civil, de pesquisa e entidades de classe.

No caso de Minas Gerais, a situação de retrocesso ambiental é ainda mais absurda, considerando, por exemplo, que as principais áreas de recarga hídrica estão vinculadas aos ecossistemas campestres, especialmente os campos rupestres. Entretanto, parece que um “detalhe” passou despercebido por parte das manifestações que aconteceram nos últimos dias: para além dos eventuais interesses agrícolas, Minas Gerais possui uma das maiores extensões de campos rupestres no Brasil, os quais estão quase que totalmente recobertos por concessões de direitos minerários[3]. Tal situação de risco não é coincidência, uma vez que imensas reservas minerais, especialmente de minério de ferro, estão associadas aos campos rupestres ferruginosos, também conhecidos como vegetação de canga. Os campos rupestres estão sob a proteção da Lei da Mata Atlântica, apesar de toda a inadequação observada nos processos de licenciamento ambiental. Mas, caso o PL 364/2019 seja aprovado definitivamente, todo o imenso patrimônio natural dos campos rupestres estará totalmente exposto a uma miríade de impactos negativos em larga escala.

“Minas Gerais possui uma das maiores extensões de campos rupestres no Brasil, os quais estão quase que totalmente recobertos por concessões de direitos minerários”

Apenas para pontuar alguns atributos insubstituíveis dos campos rupestres, podemos citar que representam os ecossistemas mais antigos do Brasil, da ordem de dezenas de milhões de anos de evolução; abriga o maior número de espécies de plantas raras e ameaçadas de Minas Gerais; no caso dos campos rupestres ferruginosos, também abrigam um dos mais abundantes conjuntos de cavidades naturais subterrâneas do estado e a principal área de recarga hídrica da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Em relação às compensações sobre áreas degradadas em campos rupestres ferruginosos, já foi demonstrado[4] que, mesmo a legislação vigente exigindo uma compensação de 2:1, ou seja, para cada hectare degradado o empreendedor deveria compensar conservando 2 hectares do mesmo ecossistema, os tomadores de decisão estão decidindo por um déficit de compensação, ou seja, destinando compensações para outros tipos de campos rupestres, o que reduz cada vez mais as áreas naturais ferruginosas. Com o PL 364/2019, tal situação pode ser ainda mais perigosa, uma vez que em seu art. 21, propõe destinação de área equivalente a 50% (cinquenta) por cento da área desmatada, ou seja, 0,5:1.

Diante disso, espera-se que a sociedade de Minas Gerais exija do poder público uma política que seja adequada para a proteção e conservação dos ecossistemas campestres, especialmente, os campos rupestres ferruginosos. Sem dúvida, a constituição estadual aponta no Artigo 214 um rumo incontestável para isso:

“Os remanescentes da Mata Atlântica, as veredas, os campos rupestres, as cavernas, as paisagens notáveis e outras unidades de relevante interesse ecológico constituem patrimônio ambiental do Estado e sua utilização se fará, na forma da lei, em condições que assegurem sua conservação.”


[1] Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2190986

[2] Nota técnica e jurídica – impactos ambientais decorrentes da aprovação do PL 364/19 e possibilidades de solução. SOS Mata Atlântica. Disponível em: https://sosma.org.br/documentos/Nota_Tecnica_Campos_de_Altitude.pdf

[3] Jacobi, C.M., Carmo, F.F., & de Campos, I.C. 2011. Soaring extinction threats to endemic plants in Brazilian metal-rich regions. Ambio, 40, 540-543.

[4] Carmo, F., & Kamino, L. 2022. Controversies and hidden risks in biodiversity offsets in critically threatened Canga (ironstone) ecosystems in Brazil. Oryx, 1-9.